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I love mankind; it's people I can't stand.
Charles M. Schulz

 

abril 10, 2010

 

Círculos Uninominais

Num fim de semana que parece ter visto o ressurgimento tímido, através de uma nova liderança, de uma nova possibilidade de Oposição em Portugal, ainda não vejo ninguém a falar nesta reforma do sistema eleitoral:

in O Insurgente

(Este post resulta da adaptação de dois posts, um bastante recente, outro mais antigo, sobre este assunto, ambos publicados aqui)
O João Miranda toca num ponto interessante, quando se refere ao "caso" das faltas dos deputados. De facto, mais importante que as faltas em si, é a falta de responsabilização do comportamento dos deputados. Faço uma pequena comparação com Inglaterra. Há alguns meses, George Galloway, deputado, entrou numa das muitas versãos do Big Brother lá do sítio. Durante várias semanas, faltou ao Parlamento. Acima de tudo, porque pode. Não precisa de estar lá todos os dias, só vota naquilo que quer votar. Mas o registo dos seus votos é público. O facto de ter faltado quando se deu uma votação importante relativa à sua circunscrição eleitoral é conhecida. E como, em Inglaterra, os deputados são eleitos em círculos uninominais, os seus eleitores, plenamente conscientes do comportamento do seu representante, poderão, nas próximas eleições, penalizá-lo. Votar noutro candidato. George Galloway faz aquilo que muito bem lhe apetece. Mas será responsabilizado directamente por isso. Os nossos deputados fazem o que o partido lhes manda, sem qualquer forma de serem pessoalmente responsabilizados pelo seu comportamento. Os maus não são penalizados, e os bons não são recompensados. A mediocridade, obviamente, ganha.
A ideia é velha. O Governo, recentemente, deu-lhe ar de novidade. A possibilidade de alterar a lei eleitoral para criar círculos uninominais é hipótese há muito defendida por (quase) tudo o que é liberal, criticado por tudo o que é partido pequeno, e com atitude dúplice por parte dos dois maiores. Sempre olhei com cepticismo para essa possível alteração. Mas olhei com mais do que olho hoje.
Os círculos uninominais têm vantagem óbvias. Ao votarmos num candidato, num só candidato, ele passa a ser responsabilizado directamente, o que resulta numa maior responsabilização também do próprio eleitor. Responsabiliza o deputado porque o obriga a fazer campanha de "porta-a-porta", apresentando-se como candidato aos seus eleitores de forma directa. Impediria a substituição directa e de forma obscura de um deputado que sai por um outro que ninguém sabe quem é. Com círculos uninominais, a saída de um deputado implica uma eleição intercalar no círculo pelo qual foi eleito. Dá-se maior margem de independência ao deputado, visto que este passa a ter maior legitimidade democrática para desobedecer às ordens do partido. E responsabiliza o eleitor porque essa maior proximidade lhe permite conhecer melhor o que cada um dos candidatos a representá-lo propõe. Para além de que facilitaria a formação de maiorias absolutas, e portanto, aumentaria as condições de governabilidade.
Reconheço todas essas vantagens. E tendo o caso inglês como modelo, tudo me faria inclinar para esta opção. Mas, e sem querer parecer o dr. Portas, Portugal não é o Reino Unido. A nossa falta de cultura democrática, mais, de cultura liberal, poderia transformar as vantagens dessa proximidade nas desvantagens da demagogiazinha caciquista. O deputado que é eleito para defender os interesses da "terra", ou melhor, os empregos estatais (ou subsidiados pelo Estado) da "terra". Basta olhar para algumas das nossas Câmaras Municipais para termos uma amostra do que poderia ser o nosso Parlamento. E o caso de Daniel Campelo permite-nos não ter de ir tão longe sequer. Daí o meu cepticismo.
Mas reconheço que a situação está a chegar a um ponto insustentável. A quantidade de deputados que saem e entram sem os cidadãos darem por isso, quanto mais saberem quem eles são. O controlo quase total, ou total mesmo, por parte das direcções dos partidos, do sentido de voto dos seus deputados. O desprestígio do Parlamento, cada vez maior, e cada vez mais perigoso. Tudo isto me leva a pensar que não sendo perfeitos, os círculos uninominais seriam uma melhor opção que o actual estado de coisas. E mesmo o eventual caciquismo, a eventual demagogia da "defesa da terra", seria também da responsabilidade dos cidadãos. Aquilo que a prudência aconselharia a funcionar como uma diluição do poder, evitando a sua concentração, para evitar "ditaduras da maioria", em Portugal, transformou-se numa total diluição da responsabilidade. É esse quadro que precisa de mudar.
Mas essencialmente, o que precisaria ser alterado seria todo o papel, cada vez mais degradado, do Parlamento. Criar uma sessão semanal, em vez de mensal, de perguntas ao Primeiro-Ministro, sem agenda definida pelo governo, mas sim com total liberdade de escolha de tema a cada um dos deputados. Atribuir-se maior margem de manobra às oposições. Criar a obrigatoriedade dos Ministros de um governo terem sido eleitos como deputados nessa legislatura. Aumentar os vencimentos dos deputados. E não ceder cada vez maiores responsabilidades legislativas(as de um Parlamento) à "Europa". Uma maior saúde da nossa democracia teria de passar por aqui. Os círculos uninominais poderiam ajudar. Mas só por si, seriam insuficientes.

 

Porque era disso que me referia no inicio deste post, sobre a eleição de Pedro Passos Coelho: Mesmo depois deste ressurgimento nos parecer trazer algo de esperançoso, e sem as reformas de regime que se impõem, o Rei continua nú.

Círculos uninominais

«Ainda as listas»

Por António Barreto.
Jornal "Público", 16 de Janeiro de 2005.

«A discussão sobre os sistemas eleitorais pode, em plena campanha, parecer extemporânea. Não é a altura adequada a mudar as regras e as atenções estão mais viradas para os temas próprios da operação, seja a habitual demagogia, sejam os problemas sociais e políticos. No entanto, a oportunidade é maior do que parece: diante de nós estão todos os exemplos do sistema absurdo em vigor. E também é pertinente convidar os partidos a definirem, nos programas, as suas opiniões sobre o assunto.

Um dos motivos invocados para debater ou corrigir o sistema eleitoral consiste na necessidade de produzir um parlamento melhor e eleger deputados mais capazes. Eis uma ideia errada que corre o risco de tornar inúteis as discussões. Nada garante que as actuais listas blindadas de candidatos substituíveis produzam deputados inferiores ou superiores aos que resultariam de listas individuais e de círculos uninominais. Mesmo que fossem permitidas as candidaturas independentes, que defendo, ou que fossem proibidas as substituições dos eleitos, que preconizo, nenhum dispositivo miraculoso faria com que os felizes vencedores fossem impolutos, competentes e de dedicados servidores da causa pública.

Os argumentos sobre o valor do deputado desnaturam o debate. Na verdade, o que está em causa são os eleitores, não os eleitos. O aspecto mais importante de um sistema eleitoral é o poder conferido ao eleitor, não a qualidade do órgão eleito. É nesse sentido que defendo a criação de círculos uninominais; a proibição de substituições de deputados eleitos; e a possibilidade de apresentação de candidaturas independentes. Como não existem sistemas eleitorais perfeitos, sei que o de círculos uninominais tem defeitos. Mas também sabemos que existem dispositivos para os compensar ou corrigir. Em França, na Grã Bretanha, na Irlanda, na Alemanha, na Dinamarca e noutros países, há sólidas experiências consolidadas. Por mim, prefiro o sistema uninominal a duas voltas, como em França, mas não me choca que outros sejam os correctores, como, por exemplo, um círculo nacional.

Não sei, repito, se os círculos uninominais fazem melhores ou piores deputados do que aqueles que temos. Nem sei se os círculos uninominais estimulam ou travam os deputados pára-quedistas impostos pelo chefe nacional do partido e por Lisboa, inquietação expressa por Vital Moreira neste jornal. Mas sei que, com tempo, os círculos uninominais alteram, a favor do eleitorado e das comunidades locais, incluindo as secções dos partidos, a relação de forças com a capital e os dirigentes partidários. E é isso que pretendo: um sistema eleitoral que dê ao eleitorado a capacidade de identificar o mandato que confere, isto é, de saber em quem vota e de ter a certeza de que o eleito cumpre o seu mandato até ao fim (ou que, se o não fizer, o seu lugar não será preenchido por obscuro suplente, mas sim substituído por nova eleição parcial). O que desejo é que o eleitor tenha nas suas mãos um boletim de voto em que constem os nomes de pessoas, cada uma representando um partido, um grupo, uma ideologia, um interesse ou mesmo um capricho. Não quero que o eleitor tenha nas mãos um boletim de voto com logotipos e emblemas.

Pretendo que os cidadãos, nas suas comunidades, organizados ou não em partidos, tenham a capacidade de se entenderem na escolha de um candidato; ou possam escolher, entre vários do mesmo partido, o favorito; ou consigam negociar com o poder central do partido a designação, entre indígenas e pára-quedistas, do candidato; ou finalmente possam procurar, noutras paragens, um candidato que julguem ser capaz de defender as suas ideias e os seus interesses.

Com os círculos uninominais, confere-se mais liberdade individual ao deputado eleito. A vantagem não é sobretudo dele, ou não tanto dele, mas, uma vez mais, do eleitorado. Este ficará melhor representado se o seu deputado tiver uma independência razoável que lhe permita negociar em permanência com os poderes centrais. Um deputado mais livre e mais independente dos chefes partidários fica, ao mesmo tempo, mais dependente do seu eleitorado. O que é positivo. O objectivo é o de reforçar esta dependência, não para tolher o seu papel de representante, mas para lhe permitir negociar as duas dependências, do partido nacional e do organismo local ou da comunidade a que pertence.

Desejo que os eleitores tenham mais liberdade, mais força e mais escolhas e não estejam limitados aos candidatos oficiais dos partidos. Quero que tenham a possibilidade de votar em candidatos independentes ou de partidos locais ou mesmo de grupos de interesses efémeros. Essa mera possibilidade aumenta os poderes dos eleitores e dos membros locais dos partidos, que ficariam assim mais bem armados para negociar a selecção de candidatos. Não esqueço que uma das capacidades dos cidadãos ou órgãos locais dos partidos será a de procurar, fora das suas fronteiras territoriais, candidatos fortes e conhecidos. A liberdade do cidadão não se pode limitar a ter de escolher entre as pessoas da sua comunidade: pode muito bem acontecer que se sinta mais bem representado por uma figura exterior. Desde que desejada e negociada.

Os círculos uninominais transformam um deputado eleito em representante de toda a comunidade do seu círculo. Em contraste, as listas partidárias blindadas, em sistema proporcional, fazem dos deputados representantes dos partidos. Em Portugal não há um deputado de Vila Real, de Benfica ou de Loulé, mas sim do PSD, do PS ou do PCP. Com deputados de círculo, qualquer cidadão, em qualquer comunidade, pode dirigir-se ao seu deputado, sem olhar às suas preferências partidárias. A proeminência partidária (na verdade, um monopólio) é tal que há em Portugal muita gente que não tem deputado. Com o sistema que temos, seria necessário que os partidos tivessem deputados em todos os distritos para que toda a gente se sentisse representada.

Em resumo. A questão pode parecer obscura, distante dos problemas emocionantes da saúde e do desemprego. Mas, na verdade, é no sistema eleitoral fechado, de monopólio partidário e de irresponsabilidade individual que reside uma das causas do mal-estar político crescente em que vivemos. Um sistema eleitoral estabelece regras e relações de força entre os cidadãos e as organizações políticas, entre eleitores e partidos, entre as comunidades locais e o poder central. Em Portugal, essa relação é desequilibrada, sempre em detrimento do eleitor, do cidadão, da comunidade e da organização local do partido ou dos interesses. É esse desequilíbrio que importa corrigir, recorrendo aos círculos uninominais e a um sistema aberto. Quase só os dirigentes partidários o negam. Percebe-se porquê. Como sempre, o voto é uma arma. Mas hoje, não é do povo: é dos chefes de partido.»

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